O QUE FICA DO QUE FOMOS - WILLIAM CONTRAPONTO

 O Que Fica do Que Fomos

William Contraponto


Se um dia eu cruzar a noite inteira

e o corpo cansar do próprio som,

não esperarei por luz ou fronteira;

apenas o rastro do que ainda sou.


Porque além da morte não há segredo,

não há espírito buscando um lar.

Há só memória vencendo o medo

e o que deixamos no fundo do olhar.


O que fica do que fomos é o gesto,

é o nome lançado ao vento incerto.

Não é alma pairando em algum lugar,

é a lembrança que insiste em continuar.

E se eu não voltar, que seja assim:

no que construí, no que vive em ti.


Quando a última porta se fechar,

não haverá juízo nem muralha.

A vida é um barco que aprende a passar,

e cada travessia ensina – e falha.


O que chamam alma, eu chamo história:

a voz simples do que se amou.

É a cicatriz guardando a memória

de cada luta que alguém lutou.


O que fica do que fomos é o gesto,

é o nome lançado ao vento incerto.

Não é alma pairando em algum lugar,

é a lembrança que insiste em continuar.

E se eu não voltar, que seja assim:

no que construí, no que vive em ti.


Se deixo um verso solto pela rua,

que seja luz pra quem quiser seguir.

Não há mistério entre sombra e lua:

há só a marca do que se quis sentir.

E quem nos guarda não é o além,

é quem repousa o nosso bem.


No silêncio que sucede o último passo,

ninguém nos chama para salvação.

O tempo recolhe o nosso espaço

e entrega aos outros a continuação.


Se algo vive depois do adeus,

não são anjos nem eternidade:

é o que plantamos no chão dos seus,

a parte nossa que vira verdade.


O que fica do que fomos é o gesto,

é o nome lançado ao vento incerto.

Não é alma pairando em algum lugar,

é a lembrança que insiste em continuar.

E se eu não voltar, que seja assim:

no que construí,

no que vive em ti,

no que chamam fim

e que eu chamo de existir.